As crianças que jogavam bola na
pequena rua abriam caminho para o velho passar.
De cara sisuda, bigodes grossos
e brancos, sobrancelhas tão grossas e desajeitadas que poderiam servir de
bigodes, ele assustava e afastava a todos com um mero olhar. Seus cabelos
brancos e fartos escondiam uma vida de sofrimentos e luta.
Muito pequeno, fora
obrigado a fugir de sua cidade natal, Van, no Lago de Van, na Turquia oriental,
quando na segunda guerra mundial, os russos tomaram a região. Em tão tenra idade
amargou a notícia da morte de seu pai na mesma guerra. Filho único entre sete
filhas. Sua mãe, desesperada pela morte do marido, suicidou-se. Foi criado
pelas irmãs. Precisou trabalhar sobremaneira para compensar a falta de força e
ânimo das moças. Como homem da família, foi o guardião das tradições do Islã no
seio de sua casa. Aos quatorze anos já era um tirano em nome da honra.
Estabeleceu-se em Esmirna onde prosperou criando ovelhas. Logo dominava o
mercado local com a venda de lã e queijos onde a maioria da população buscava
na pesca seu sustento. Lá casou-se com Benu, quase uma mula, tanto pela
capacidade de suportar trabalhos pesados quanto pela resignação em servir ao
marido como senhor absoluto.
Ainda em Esmirna, sepultou quase todas as suas
irmãs, tendo restado apenas uma, Pelín, que após casar foi morar numa cidade
distante como o fim do mundo, Manaus, no Brasil.
Ele sequer fazia ideia para
qual direção situava-se a grande América do Sul. Mesmo assim, mesmo contra
gosto, quase aos setenta anos, vendeu suas posses em Esmirna e mudou-se com o
que sobrara de sua família para Manaus, quando sua irmã Pelín morreu, deixando
para o velho toda a sua fortuna, seu negócio de beneficiamento de castanha e
andiroba, e seu filho, Omer, com apenas vinte anos.
Ele, que por sua tirania
com as mulheres fora castigado tendo apenas três filhas, agora teria que cuidar
do filho de sua irmã. Ele era sua esperança de algum descanso na velhice, já
que trazia consigo nada mais que o peso morto de sua Benu, velha e cansada, e
sua filha Nilúfer, de apenas dezessete anos, filha temporã, cuja vida de
desgosto certamente não lhe seria nem útil, nem lucrativa. Pobre velho. Depois
de tanto trabalho, não obteve recompensas.
- Meu tio Boran – disse Omer
abaixando sua cabeça e respeitosamente beijando-lhe a mão e encostando-a à
própria testa, conforme a tradição turca.
- É você o filho de minha irmã? – perguntou o velho quase rosnando
para o rapaz. Olhou-o com desprezo. Era uma vergonha. Um homem daquela idade
não ter sua própria família. Não dedicava todo o seu tempo para cuidar do
negócio de sua mãe. A ideia de que o jovem a deixara morrer de tanto trabalhar
para estudar era imperdoável.
- Sou eu, meu tio. Me chamo Omer. É
uma grande honra recebe-lo e à sua família. Entre. A casa é sua – disse o rapaz
entregando-lhe cerimoniosamente as chaves da casa.
O velho entrou deixando para trás
suas mulheres. Não percebeu quando os olhos de Omer e Nilúfer se encontraram.
Ela, magra de uma forma que só a tornava delicada, caminhou parecendo flutuar.
Abaixou-se para pôr uma das malas no chão e ajeitar o peso de outra quando Omer
socorreu-lhe. Ao mesmo tempo que a moça, Omer segurou a mala e as duas mãos se
tocaram. O manto negro dos cabelos longos e lisos de Nilúfer se interpôs entre
os dois por alguns instantes, mas logo o verde profundo dos olhos de Omer
encontrava a escuridão hipnotizante dos olhos amendoados de Nilúfer.
- Minha filha! – gritou Benu –
Cubra seus cabelos!
Rapidamente a moça buscou seu lenço
que havia caído e recompôs-se enquanto Omer carregava suas malas. Seu perfume másculo e amadeirado ecoava em suas narinas. Ela sentiu um calafrio percorrer- lhe a
espinha quando contemplou seu primo. Alto, também ele era esguio, mas forte ao
mesmo tempo. Seus cabelos eram negros e chegavam encaracolados aos ombros. Seu
rosto era de traços fortes, traços de turco, mas seus olhos eram
surpreendentemente verdes. Dentre todas as belezas que ela conhecera em sua
triste vida, Omer era sem dúvida a maior delas.
-Então, você nasceu depois da morte
de suas irmãs? – ele
perguntou enquanto lhe servia uma xícara de chá.
- Sim. Elas morreram com uma forte
pneumonia. Eu nasci doze anos depois. Meu pai queria chamar-me Ceza, que
significa “Castigo”. Mas minha mãe rogou-lhe e ele permitiu que ela me chamasse
Nilúfer, que ...
- Deriva de Nilo, significa
“azulado” – ele a interrompeu.
Os jovens se olharam por um tempo que não se
podia calcular. Desde sua chegada, a vida de Nilúfer sofrera um refrigério sem
par. Ela dormia tarde e acordava cedo para poder desfrutar da companhia de seu
primo o quanto fosse possível. Ele, ainda que ocupado com seus estudos e os
afazeres impostos pelo velho Boran, sempre destinava tempo para fazer-lhe
companhia. Às vezes a ajudava na cozinha, na limpeza do jardim, nas compras da casa. Tudo como pretexto para ficar próximo a ela.
Assim, após dois meses de sua
chegada, Omer e Nilufer sucumbiram à paixão. Morar na mesma casa era um
presente precioso. Passavam as madrugadas amando-se silenciosamente. Durante o
dia cuidavam para que seus olhares apaixonados não os delatassem. À noite,
recompensavam-se pelo sacrifício absurdo de não poderem se tocar por tantas horas.
E eram felizes naquelas horas de mormaço e amor.
- Onde estão seus panos, Nilúfer? – gritou-lhe o pai puxando-a
violentamente pelos cabelos. A mãe, agachada, chorava e gritava arrependida por
ter contado a Boran que já não via o sangue de Nilúfer por mais de três luas. –
Onde está teu sangue, mulher desgraçada? Fostes deflorada! Tu és Ceza, tu
és meu pior castigo! Na velhice ainda tenho que sofrer por causa da desgraça
das mulheres dessa família!
Omer correu assustado para ver com
horror a cena de tamanha violência.
Sua amada agora parecia uma boneca de pano
nas mãos do pai opressor. Seus olhos amendoados estavam inchados e arrocheados
em tantos tons que o fez paralisar. De sua boca delicada escorria sangue. Seu
corpo estava exposto na camisola rasgada. Omer foi rápido, mas não o suficiente
para impedir que velho Boran a atirasse escadas abaixo.
- Nilo... Acorda minha filha –
dizia Benu acariciando os cabelos da moça. Nilúfer abriu os olhos ainda muito
doloridos e mal os abriu voltou a chorar silenciosamente.
- Escuta minha prima – ela sentiu o
calor das mãos de Omer segurando sua pequena mão. Assutou-se e num salto saiu
da cama. Aquilo não era possível! Seu pai descobriria que Omer era o pai de seu
filho e os mataria.
- Calma, Nilúfer! – adiantou-se o
homem vestido de branco que rapidamente segurou-lhe a mão esquerda para que o
acesso não se perdesse de sua veia. – Fique calma – ele disse mostrando-lhe o
escalpe e o soro. Ela voltou-se vagarosamente para a
cama, mas seus olhos apavorados iam de Boran a Omer numa velocidade incrível.
- Minha prima – disse Omer mais uma
vez aproximando-se. – Escute com calma e confie em mim – ele colocou o dedo
indicador sobre os próprios lábios, lembrando-a do gesto que faziam ao despedir-se
antes do amanhecer. Ela compreendeu, mas não podia acalmar-se.
– Eu tenho,
prima, uma boa notícia para te dar – disse Omer, olhando para o tio e obtendo
do velho um aceno positivo de sua cabeça branca.
- Eu prometi a teu pai que vingaria
a tua honra e que esconderia a tua vergonha. O forasteiro que te seduziu, esse
já se foi para o mármore do inferno. Eu mesmo cuidei dele como prometi a meu
tio. Tua honra está limpa, querida prima. Agora eu vou sacrificar a minha vida
por amor ao nosso nome e por temor de Alá. Não deixarei que essa vergonha se
ponha sobre o nome de nossa família. Agora acalma-te que já está tudo arranjado
e hoje mesmo serás minha esposa.
Nilúfer mais uma vez não pode
conter as lágrimas. Buscava nos olhos de Omer a resposta para tantas perguntas.
Oscilava entre o desespero e o alívio. Sabia que não podia perguntar, mas sabia
que estava a salvo.
- Quisera eu ter tido por filho
esse homem de coragem e não a ti, menina. Tua desgraça é nada frente a tua
sorte por ter este primo para salvar tua honra – disse Boran saindo do quarto
do hospital, deixando Omer e Benu acalmando Nilúfer.
Os dez anos que se passaram foram
estranhos aos olhos do velho Boran. Sentia-se tranquilo ao ver sua filha feliz bem casada com Omer. Orgulhava-se do sobrinho
genro que enriquecia administrando bem os negócios da família e a carreira de
médico. Mas sobretudo, era feliz por ver crescer seu neto Kerim. Mesmo após o
trágico acidente de Nilúfer nas escadas,
Kerim nasceu com saúde e era criado por Omer como se fosse seu próprio filho. O
menino era uma tesouro e Boran o amava. Ele era como um anjo de cabelos negros
encaracolados. Seus olhos tão verdes lembravam os olhos de Omer...
O velho Boran então levantou-se da
cadeira e foi ao quarto o mais rápido que pode.
- O que queres nessa gaveta? – perguntou a velha Benu.
- Onde estão fotos? As fotos de minha irmã Pelín? – ele indagou quase gritando
furioso.
Boran desceu as escadas gritando
por Omer. Iria mata-lo com as próprias mãos. Aquele jovem cafajeste o enganara
por dez anos, mas agora teria sua pena.
- Omer! Omer! – gritava ele
trincando os dentes e apertando o retrato de Pelín e Omer quando este tinha a
idade de Kerim. A semelhança entre os dois não podia ser um acaso – Omer! Vem
que agora terás o que mereces, cafajeste mentiroso!
Nilúfer correu logo atrás de Omer
quando ouviram os gritos do velho. Omer chegou a tempo apenas de ver o homem
rolando pelas escadas abaixo. As mesmas onde ele quase assassinara seu primeiro
neto na barriga da filha. Omer agachou-se e contemplou a face do velho paralisada.
- Está tendo um AVC! Chama uma
ambulância, meu amor! – gritou Omer para Nilúfer. Tirou a foto de sua mão e ao perceber que o velho descobrira que
Kerim era seu filho, sorriu discretamente.
- Nestas escadas quase matastes meu
filho, tio Boran – disse Omer aos ouvidos do velho enquanto guardava a foto no bolso.
Boran agonizava, tentava falar, mas já não conseguia. Olhou desesperado para
Benu que se arrastava sem condições de aceitar que seu marido estava às portas
da morte. Nilúfer voltou a tempo de ver seu pai fechar os olhos.
Morreu o velho
Boran. Morreu nos braços do sobrinho médico. Morreu sabendo que Omer fora mais
esperto que ele. Casou-se com Nilúfer como um herói, quando, na verdade, ele
era seu amante. E o pior, casou-se com o apoio e a aprovação do velho. Os dois
jovens o passaram para trás. Eram felizes e ricos.
Morreu o velho Boran contemplando a
filha que odiara e o homem que a vingara. Morreu e levou consigo o segredo e Omer e
Nilufer.