segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Libertação

Desde a infância Ana Paula sofria de uma grande dificuldade para evacuar. Nem sempre era prisão de ventre. Muitas vezes era medo mesmo. A mãe, uma versão bem maquiada e elegante do próprio Hitler, ensinara que “fazer cocô” era uma coisa suja, inaceitável para uma dama. Ela nunca conseguiu flagrar a mãe saindo do banheiro. Sentia pânico ao perceber os sinais do próprio corpo indicando que era chegada a hora de “pôr para fora”. Sua vida inteira fora vivida nessa angústia de esconder que ela era uma pessoa normal, um ser humano que se alimentava e que, portanto, teria que descartar os seus resíduos orgânicos.
- Fé, amiga! Chegou a hora da sua libertação! Você vai poder cagar à vontade agora! – dizia sua melhor amiga enquanto esticava o véu de Ana Paula.
- Pai! – a moça olhou desesperada para o pai. – Não posso casar!
- Como não, filha?
- O que eu vou fazer quando eu precisar ir ao banheiro, pai?
- Apenas vá, meu amor – dizia o pai com aquele riso contido.
- Meu marido vai perceber... – choramingava a moça na porta da igreja.
- Escuta, filhinha, isso é normal. As coisas vão se arrumar. O Rafael não é a sua mãe. Ele mesmo leva isso de boa, você vai ver, tudo vai ficar bem.
A cerimônia foi linda. A festa, maravilhosa. A noite de núpcias, foi perfeita. Especialmente porque Rafael caiu em sono profundo e Ana Paula aproveitou para aliviar-se sem pressões externas.  E o melhor de tudo, acabou descobrindo uma estratégia excelente: sempre esperaria o marido dormir para ir ao banheiro com calma.
O que Ana Paula não pode prever foi que seu corpo poderia gritar por alívio durante o dia, num final de semana em que Rafael estava em casa. Sábado à tarde, às duas da tarde, Rafael lia na sala e Ana Paula suava frio pensando em como faria cocô sem que o marido percebesse. Ela sempre precisava de tempo para relaxar. Ele iria perceber. Ela decidiu arriscar. Foi para o banheiro em silêncio. Não avisou, apenas foi.
- Desgraça! – ela sussurrou quando lembrou que a porta do banheiro não trancava. Mas não dava para recuar, “a coisa” estava empurrando-se de dentro para fora, tamanha era a urgência. – Ai, que droga... – ela gemia sentada no vaso sanitário fazendo força para expelir o trem, mas o trem não saía.
- Amor! – ela ouviu a voz do marido chamando. “Merda!”, ela pensou.
-Onde você está, amorzinho?
- Eu... Eu... – ela sentiu o orifício circular corrugado travar-se. Sem rota de fuga, ela fez uma careta ao responder:
- Eu estou no banheiro... – ela praticamente sussurrou.
- Onde? – berrou de volta o marido.
- No banheiro... – ela repetiu querendo chorar.
E sem que ela esperasse, o pior aconteceu. Rafael abriu a porta do banheiro, com a maior cara de normal.  Pronto! Sua vida havia chegado ao fim. Ela sentiu que morreria. Não! Ela viveria, mas o seu casamento iria acabar, afinal, Rafael havia descoberto que aquele ser angelical, aquela moça linda e delicada evacuava. Ela sentiu um calafrio e um profundo desespero ao imaginar que, depois de vê-la ali sentada no vaso sanitário, o marido nunca mais sentiria tesão por ela. Em poucas semanas, começariam as brigas. Ele não a procuraria mais. Certamente encontraria uma amante. Ela descobriria. O divórcio seria inevitável. Ana Paula morria por dentro. Aquela fração de segundos trouxe à sua mente o sofrimento de uma vida inteira. A opressão de sua mãe. As cólicas esperando algum momento para ir ao banheiro na escola. A vergonha de ser uma mulher que evacuava diante de um marido lindo, sexy, que a deixaria depois daquela visão grotesca. Travada de todas as formas possíveis, ela fitou Rafael por um momento. Sentiu revolta. Por que não merecia ser feliz como qualquer outra pessoa? Lembrou do conselho do pai. Era verdade! Rafael não era sua mãe.
- Oi amor. Que “cê” tá fazendo? – perguntou o marido sem imaginar a batalha que se travava na cabeça da esposa. E ela, num ímpeto de libertar-se para sempre daquele medo desgraçado, respondeu com cara de natural:
- Tô cagando. Dá licença?


O Velho Boran

As crianças que jogavam bola na pequena rua abriam caminho para o velho passar. 
De cara sisuda, bigodes grossos e brancos, sobrancelhas tão grossas e desajeitadas que poderiam servir de bigodes, ele assustava e afastava a todos com um mero olhar. Seus cabelos brancos e fartos escondiam uma vida de sofrimentos e luta. 

Muito pequeno, fora obrigado a fugir de sua cidade natal, Van, no Lago de Van, na Turquia oriental, quando na segunda guerra mundial, os russos tomaram a região. Em tão tenra idade amargou a notícia da morte de seu pai na mesma guerra. Filho único entre sete filhas. Sua mãe, desesperada pela morte do marido, suicidou-se. Foi criado pelas irmãs. Precisou trabalhar sobremaneira para compensar a falta de força e ânimo das moças. Como homem da família, foi o guardião das tradições do Islã no seio de sua casa. Aos quatorze anos já era um tirano em nome da honra. Estabeleceu-se em Esmirna onde prosperou criando ovelhas. Logo dominava o mercado local com a venda de lã e queijos onde a maioria da população buscava na pesca seu sustento. Lá casou-se com Benu, quase uma mula, tanto pela capacidade de suportar trabalhos pesados quanto pela resignação em servir ao marido como senhor absoluto. 

Ainda em Esmirna, sepultou quase todas as suas irmãs, tendo restado apenas uma, Pelín, que após casar foi morar numa cidade distante como o fim do mundo, Manaus, no Brasil.

 Ele sequer fazia ideia para qual direção situava-se a grande América do Sul. Mesmo assim, mesmo contra gosto, quase aos setenta anos, vendeu suas posses em Esmirna e mudou-se com o que sobrara de sua família para Manaus, quando sua irmã Pelín morreu, deixando para o velho toda a sua fortuna, seu negócio de beneficiamento de castanha e andiroba, e seu filho, Omer, com apenas vinte anos. 

Ele, que por sua tirania com as mulheres fora castigado tendo apenas três filhas, agora teria que cuidar do filho de sua irmã. Ele era sua esperança de algum descanso na velhice, já que trazia consigo nada mais que o peso morto de sua Benu, velha e cansada, e sua filha Nilúfer, de apenas dezessete anos, filha temporã, cuja vida de desgosto certamente não lhe seria nem útil, nem lucrativa. Pobre velho. Depois de tanto trabalho, não obteve recompensas.

- Meu tio Boran – disse Omer abaixando sua cabeça e respeitosamente beijando-lhe a mão e encostando-a à própria testa, conforme a tradição turca.

- É você o filho de minha irmã? – perguntou o velho quase rosnando para o rapaz. Olhou-o com desprezo. Era uma vergonha. Um homem daquela idade não ter sua própria família. Não dedicava todo o seu tempo para cuidar do negócio de sua mãe. A ideia de que o jovem a deixara morrer de tanto trabalhar para estudar era imperdoável.

- Sou eu, meu tio. Me chamo Omer. É uma grande honra recebe-lo e à sua família. Entre. A casa é sua – disse o rapaz entregando-lhe cerimoniosamente as chaves da casa.

O velho entrou deixando para trás suas mulheres. Não percebeu quando os olhos de Omer e Nilúfer se encontraram. 

Ela, magra de uma forma que só a tornava delicada, caminhou parecendo flutuar. Abaixou-se para pôr uma das malas no chão e ajeitar o peso de outra quando Omer socorreu-lhe. Ao mesmo tempo que a moça, Omer segurou a mala e as duas mãos se tocaram. O manto negro dos cabelos longos e lisos de Nilúfer se interpôs entre os dois por alguns instantes, mas logo o verde profundo dos olhos de Omer encontrava a escuridão hipnotizante dos olhos amendoados de Nilúfer.

- Minha filha! – gritou Benu – Cubra seus cabelos!
Rapidamente a moça buscou seu lenço que havia caído e recompôs-se enquanto Omer carregava suas malas. Seu perfume másculo e amadeirado ecoava em suas narinas. Ela sentiu um calafrio percorrer- lhe a espinha quando contemplou seu primo. Alto, também ele era esguio, mas forte ao mesmo tempo. Seus cabelos eram negros e chegavam encaracolados aos ombros. Seu rosto era de traços fortes, traços de turco, mas seus olhos eram surpreendentemente verdes. Dentre todas as belezas que ela conhecera em sua triste vida, Omer era sem dúvida a maior delas.

-Então, você nasceu depois da morte de suas irmãs? – ele perguntou enquanto lhe servia uma xícara de chá.
- Sim. Elas morreram com uma forte pneumonia. Eu nasci doze anos depois. Meu pai queria chamar-me Ceza, que significa “Castigo”. Mas minha mãe rogou-lhe e ele permitiu que ela me chamasse Nilúfer, que ...
- Deriva de Nilo, significa “azulado” – ele a interrompeu. 

Os jovens se olharam por um tempo que não se podia calcular. Desde sua chegada, a vida de Nilúfer sofrera um refrigério sem par. Ela dormia tarde e acordava cedo para poder desfrutar da companhia de seu primo o quanto fosse possível. Ele, ainda que ocupado com seus estudos e os afazeres impostos pelo velho Boran, sempre destinava tempo para fazer-lhe companhia. Às vezes a ajudava na cozinha, na limpeza do jardim, nas compras da casa. Tudo como pretexto para ficar próximo a ela.

Assim, após dois meses de sua chegada, Omer e Nilufer sucumbiram à paixão. Morar na mesma casa era um presente precioso. Passavam as madrugadas amando-se silenciosamente. Durante o dia cuidavam para que seus olhares apaixonados não os delatassem. À noite, recompensavam-se pelo sacrifício absurdo de não poderem se tocar por tantas horas. E eram felizes naquelas horas de mormaço e amor.

- Onde estão seus panos, Nilúfer? – gritou-lhe o pai puxando-a violentamente pelos cabelos. A mãe, agachada, chorava e gritava arrependida por ter contado a Boran que já não via o sangue de Nilúfer por mais de três luas. – Onde está teu sangue, mulher desgraçada? Fostes deflorada! Tu és Ceza, tu és meu pior castigo! Na velhice ainda tenho que sofrer por causa da desgraça das mulheres dessa família!

Omer correu assustado para ver com horror a cena de tamanha violência. 

Sua amada agora parecia uma boneca de pano nas mãos do pai opressor. Seus olhos amendoados estavam inchados e arrocheados em tantos tons que o fez paralisar. De sua boca delicada escorria sangue. Seu corpo estava exposto na camisola rasgada. Omer foi rápido, mas não o suficiente para impedir que velho Boran a atirasse escadas abaixo.

- Nilo... Acorda minha filha – dizia Benu acariciando os cabelos da moça. Nilúfer abriu os olhos ainda muito doloridos e mal os abriu voltou a chorar silenciosamente.

- Escuta minha prima – ela sentiu o calor das mãos de Omer segurando sua pequena mão. Assutou-se e num salto saiu da cama. Aquilo não era possível! Seu pai descobriria que Omer era o pai de seu filho e os mataria.

- Calma, Nilúfer! – adiantou-se o homem vestido de branco que rapidamente segurou-lhe a mão esquerda para que o acesso não se perdesse de sua veia. – Fique calma – ele disse mostrando-lhe o escalpe e o soro. Ela voltou-se vagarosamente para a cama, mas seus olhos apavorados iam de Boran a Omer numa velocidade incrível.

- Minha prima – disse Omer mais uma vez aproximando-se. – Escute com calma e confie em mim – ele colocou o dedo indicador sobre os próprios lábios, lembrando-a do gesto que faziam ao despedir-se antes do amanhecer. Ela compreendeu, mas não podia acalmar-se. 
– Eu tenho, prima, uma boa notícia para te dar – disse Omer, olhando para o tio e obtendo do velho um aceno positivo de sua cabeça branca.

- Eu prometi a teu pai que vingaria a tua honra e que esconderia a tua vergonha. O forasteiro que te seduziu, esse já se foi para o mármore do inferno. Eu mesmo cuidei dele como prometi a meu tio. Tua honra está limpa, querida prima. Agora eu vou sacrificar a minha vida por amor ao nosso nome e por temor de Alá. Não deixarei que essa vergonha se ponha sobre o nome de nossa família. Agora acalma-te que já está tudo arranjado e hoje mesmo serás minha esposa.

Nilúfer mais uma vez não pode conter as lágrimas. Buscava nos olhos de Omer a resposta para tantas perguntas. Oscilava entre o desespero e o alívio. Sabia que não podia perguntar, mas sabia que estava a salvo.

- Quisera eu ter tido por filho esse homem de coragem e não a ti, menina. Tua desgraça é nada frente a tua sorte por ter este primo para salvar tua honra – disse Boran saindo do quarto do hospital, deixando Omer e Benu acalmando Nilúfer.

Os dez anos que se passaram foram estranhos aos olhos do velho Boran. Sentia-se tranquilo ao ver sua filha feliz  bem casada com Omer. Orgulhava-se do sobrinho genro que enriquecia administrando bem os negócios da família e a carreira de médico. Mas sobretudo, era feliz por ver crescer seu neto Kerim. Mesmo após o trágico acidente de Nilúfer nas escadas, Kerim nasceu com saúde e era criado por Omer como se fosse seu próprio filho. O menino era uma tesouro e Boran o amava. Ele era como um anjo de cabelos negros encaracolados. Seus olhos tão verdes lembravam os olhos de Omer...

O velho Boran então levantou-se da cadeira e foi ao quarto o mais rápido que pode.
- O que queres nessa gaveta? – perguntou a velha Benu.
- Onde estão fotos? As fotos de minha irmã Pelín? – ele indagou quase gritando furioso.
Boran desceu as escadas gritando por Omer. Iria mata-lo com as próprias mãos. Aquele jovem cafajeste o enganara por dez anos, mas agora teria sua pena.

- Omer! Omer! – gritava ele trincando os dentes e apertando o retrato de Pelín e Omer quando este tinha a idade de Kerim. A semelhança entre os dois não podia ser um acaso – Omer! Vem que agora terás o que mereces, cafajeste mentiroso!

Nilúfer correu logo atrás de Omer quando ouviram os gritos do velho. Omer chegou a tempo apenas de ver o homem rolando pelas escadas abaixo. As mesmas onde ele quase assassinara seu primeiro neto na barriga da filha. Omer agachou-se e contemplou a face do velho paralisada.

- Está tendo um AVC! Chama uma ambulância, meu amor! – gritou Omer para Nilúfer. Tirou a foto de sua mão e ao perceber que o velho descobrira que Kerim era seu filho, sorriu discretamente. 

- Nestas escadas quase matastes meu filho, tio Boran – disse Omer aos ouvidos do velho enquanto guardava a foto no bolso. Boran agonizava, tentava falar, mas já não conseguia. Olhou desesperado para Benu que se arrastava sem condições de aceitar que seu marido estava às portas da morte. Nilúfer voltou a tempo de ver seu pai fechar os olhos. 

Morreu o velho Boran. Morreu nos braços do sobrinho médico. Morreu sabendo que Omer fora mais esperto que ele. Casou-se com Nilúfer como um herói, quando, na verdade, ele era seu amante. E o pior, casou-se com o apoio e a aprovação do velho. Os dois jovens o passaram para trás. Eram felizes e ricos.  

Morreu o velho Boran contemplando a filha que odiara e o homem que a vingara. Morreu e levou consigo o segredo e Omer e Nilufer. 

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Ilusão "Idiótica"



Fiz exame de sangue esta semana.


Ontem cedo, alguém do laboratório me ligou. Era o micro biologista responsável. Fez uma série de perguntas, agradeceu e desligou. Horas depois, o telefone voltou a tocar. Era um dos sócios do laboratório, médico. Fez outras perguntas. Agradeceu e desligou.  No fim da tarde, outra ligação. Em conferência, o micro biologista, o médico que havia ligado e ainda o outro sócio, outra médica toda doutorada.

- Estamos verdadeiramente espantados com o resultado de seu exame e não sabemos como registrar o que vimos – disse ela, com voz de mulher de 35 anos, loira, maquiagem perfeita e sapatos Capodarte.

- Para que você possa compreender, o sangue é composto por plasma sanguíneo, hemácias, leucócitos e plaquetas. Também encontramos oxigênio, glicose, proteínas, hormônios, vitaminas, gás carbônico, sais minerais, aminoácidos, lipídios, ureia, etc. – o micro biologista explicou – Mas no seu caso, essa composição está totalmente alterada!

- Como assim alterada?  – perguntei num misto de tédio e irritação.

- Seu sangue mostra uma composição básica de saudade e mágoa... Isso não se explica! – disse o médico sócio com quem eu falara pela manhã.

- Como não se explica?  O que não está claro para o senhor, doutor? O senhor nunca viu uma amostra de sangue apaixonado?

- Não!

- Nunca viu uma amostra de sangue de um indivíduo poeta?

- Não! – respondeu o médico obviamente irritado.  – Não existe esse tipo de diferença entre sangues ... – ele foi interrompido pela outra médica.

- Talvez você possa nos explicar o que acontece no sangue de alguém apaixonado – disse a doutora num tom de pedido, tão humilde que destoava do fúcsia de sua bolsa D&G.

Suspirei impaciente. Que merda de gente fria que não sabe o que se passa no organismo dos que amam.

- Isso acontece com pessoas normais, que amam, que respiram, que aproveitam os sabores das ervas na massa, que lembram da frase exata do filme, que percebem os sons de cada instrumento no arranjo da música... Gente humana, sabe? Do tipo diferente de gente que nasce com frigidez degenerativa do miocárdio. Gente que sabe que médico impiedoso é pleonasmo – respirei fundo mais uma vez.

- Eu explico – sentei e coloquei o troço no viva-voz – Eu conheci uma pessoa há alguns dias atrás. Um rapaz. Um rapaz muito interessante, bonito, inteligente etc. Ele me paquerou e eu fiquei interessada. Depois de muitos, muitos anos sem sentir o coração bater forte por alguém, eu senti paixão. Paixonite. Vocês sabem o que é isso? – perguntei com a voz alterada.

- É... Bom... Ah... Sim. Teoricamente... Já, já lemos sobre este tipo de reação química – gaguejou o micro biologista.

- Então, aconteceu este rápido descongelamento e eu senti que o coração mudou drasticamente de temperatura. Tudo ficou muito quente, muito urgente e eu comecei a ter alucinações.

- Que tipo de alucinações?

- Eu encasquetei que ele poderia estar realmente interessado em mim.

- E o que aconteceu?

- Eu evoluí para um estado emocional do tipo maníaco. Ele me ligou, nós conversamos por horas, o que me levou a alucinar novamente e no auge da alucinação eu acreditei que ele também queria me ver e... – fiquei em silêncio.

- E?

- Eu tomei a iniciativa – respondi frustrada.

Ninguém disse nada. Eu continuei.

- Nós chegamos a nos encontrar. Eu acho que aconteceu uma conversa deliciosa, um encontro de duas pessoas tão parecidas, tão desejosas uma da outra... Eu acredito, sei lá, parece que rolaram abraços, beijos, cheiros... Num determinado momento, quando nos beijávamos, eu abri os olhos e vi o semblante dele numa caretinha de prazer, de satisfação... Ah! Sei lá o que foi verdade ou o que foi delírio, alucinação, loucura... Eu só sei que depois desse dia ele não apareceu mais e desde então eu me sinto congelada novamente. Só que dessa vez foi um processo super, hiper, mega pluster rápido! Foi desilusão instantânea! Eu nem quis me expor à possibilidade de descobrir que ele só queria mesmo um amasso ou aumentar a coleção dele. Eu decidi me afastar. Abandonar antes de ser abandonada. O que eu sei é que ele conseguiu, num golpe de irresponsabilidade tri gigantesca, despertar meu coração com o olhar e amordaça-lo com hipotermia proveniente do seu silêncio grotesco. Vocês pelo menos estão entendendo o que eu estou dizendo ou vocês precisam consultar um dicionário médico de patologias idiotas?

Depois de alguns segundos ouvi alguns barulhinhos que denotavam que estavam lá e compreendiam meu discurso de pessoa normal.

- Sim, nós acompanhamos bem... Você foi muito clara – disse a médica num tom reticente.

- Posso ajudar em mais alguma coisa?

- Não, não obrigada – ela continuou – Com essas informações poderemos explicar de maneira aceitável, no laudo do seu exame, que esse processo de descongelamento e recongelamento, se é que essa palavra existe, levou o seu sangue a uma alteração morfológica profunda.

- Isso é grave? Eu vou morrer? - perguntei entediada.

- Não, de forma alguma!  - respondeu rapidamente o médico – Você está bem, você vai viver. Porém, é isso aí que você já nos disse, o seu coração voltou a um estado de frieza profunda, uma descrença mesclada à esperança... Essa junção compulsória de elementos tão extremos, isso possivelmente vai te incomodar por alguns dias ainda, mas tende a passar com o tempo. Talvez você venha a sentir algum mal estar quando for exposta à figura dele, mas não será nada que você não possa minimizar com uma pequena dose de indiferença.

- Tá... Que bom – respondi irritada – Acabou?

- Sim. Obrigada. O seu laudo estará disponível aqui no laboratório amanhã, a partir das quatorze horas.

- Ok. Obrigada. Até mais.

Desliguei e fiquei imaginando a cara deles curtindo com a minha. Certamente estavam rindo e resumindo todo o meu transtorno leso afetivo com frases frias de gente louca que nunca se apaixonou:

Caso ordinário de ilusão “idiótica”, com eventos de delírio e alucinação. Ideia fixa de reciprocidade sem evidências de afeto concreto. Sintomatologia própria de abstinência do ser amado. Prognóstico: evolução paulatina da massa de mágoa e de esquecimento na composição sanguínea, com sublimação natural da massa de saudade. 


Só me resta agora fixar meus olhos no reconfortante brilho da Lua e esquecer, o quanto for possível, que a luz Solar existe.


domingo, 15 de junho de 2014

Procurado



O médico fez questão de acompanhá-la à delegacia. Conhecia os riscos que ela corria ao expor o coração a uma reconstituição do crime. Ele mesmo pulsava em ciúmes, mas o medo de perdê-la sobrepujava qualquer orgulho póstumo de seu coração há muito sepultado.
- Bom dia. Por aqui – disse cordialmente o agente que abria a porta para a sala da delegada.
Ela sentou e pousou os olhos na janela, de onde podia ver os cachos de acácia balançando contra o azul profundo do céu. Sorriu com os olhos.
- A senhora gostaria de nos contar o que aconteceu? – perguntou a delegada.
Ela olhou para o médico, que de pé ao seu lado, sentia o coração batendo forte. Ele assentiu com a cabeça e pôs a mão em seu ombro.
- Eu estava na praça, com meus amigos, quando ele chegou. Eu não dei importância, no início. Fui apresentada a ele, achei estranho que me apertasse a mão tão forte, mas nada além disso me chamou a atenção nele. Houve um momento... – ela virou-se novamente para fitar o céu – em que ele mencionou conhecer-me de fotos...
- Fotos? Quais fotos? – perguntou a delegada inclinando-se e pousando os cotovelos na mesa.
- Eu não sei.
- Você já o conhecia?
- Não. Ele disse conhecer-me de fotos. Disse que conhecia pessoas do meu convívio e que só faltava conhecer a mim.
A delegada olhou para o médico. Não encontrava lógica naquelas palavras ditas com certo riso de canto de boca. E aquela moça parecia distraída, grogue. Não inspirava confiança na policial.
- E o que aconteceu em seguida?
Pela primeira vez ela fitou a delegada. Somente então a policial percebeu a estranha imagem na íris da moça. Era como se seus olhos estivessem acesos por um brilho acinzentado, como se dentro de seus olhos estivessem outros olhos.
- Ele distanciou-se de mim. Foi falar com outras pessoas e foi nesse intervalo que aconteceu.
- O que aconteceu?
- Eu senti falta do seu olhar e o segui com os meus olhos. Ele então se virou e também buscou meu olhar de longe. Foi então que aconteceu.
- O quê, exatamente, aconteceu? – insistiu a delegada, tentando esconder a impaciência.
- Eu o amei.
- Você o quê?
- Eu o amei. Senti naquele momento que havia algo de especial nele. Era fluído, como água. Sorria e sua gentileza não era apenas aparente, mas escorria pelos dentes tão brancos... – ela suspirou. – Olhei para seu rosto, a barba tão bem feita e a pele tão impregnada de masculinidade... Eu senti que não poderia mais tirar os olhos dele. E fiquei por lá. Conversei, saí, voltei, dancei, bebi, mas de vez em quando eu me voltava em sua direção e o buscava com os olhos. E o encontrava. Era como se estivesse combinado! Sempre que eu o olhava, ele também olhava pra mim.
- Você disse que ele roubou algo de você. O que foi?
- Meu coração.
- Seu coração? – perguntou a delegada incrédula.
- Sim.
A policial respirou profundamente entortando a boca para o lado. Olhou para o médico que, aflito, percebeu que a delegada não imaginava a gravidade da situação de sua paciente.
- Doutor, eu estou disposta a ajudá-los, mas o depoimento de sua paciente é... É desconexo. Ela não está dizendo coisa com coisa – disse a delegada começando a levantar-se de sua imponente cadeira.
- Eu posso mostrá-la. – disse a mulher levantando-se e estendendo a mão em um convite.
- Você pode me mostrar exatamente o quê?
- Tudo.
A mulher pegou a mão da delegada e a pousou delicadamente em seu peito. A mão bonita da policial afundou suavemente entre os seios da mulher. E ela soube. O impacto dos sentimentos daquela mulher foi tão forte que a delegada fechou os olhos. A boca entreaberta denunciava gemidos baixinhos, sentidos, quase que doloridos. Seu peito arfava e ela pôde sentir.
Sentiu o espaço vazio na caixa torácica. Com a ponta dos dedos percebeu a textura esponjosa dos pulmões, a forma cilíndrica do esôfago, mas não encontrou o miocárdio, não sentiu nada pulsando, mas apenas um vão. Sua expressão foi de horror. Ela arregalou os olhos, não podia acreditar naquilo. Foi somente então que ela deu-se conta da potência daquele acontecimento. Como que numa sobreposição frenética de flashes, ela encontrou os olhos do rapaz. Mergulhou no cinza daquele olhar, muito mais pela luz que emanava do que pela cor propriamente dita. Fitou a boca aberta no sorriso franco. Os dentes tão brancos, tão expostos, despertaram também nela o desejo de toca-los um a um.  E no movimento de cada pensamento da mulher, a delegada sentiu que se rendia àquela paixão.  O desejo, a alegria, a ansiedade... Da mesma forma, experimentou maravilhosa compulsão por ver seu semblante de alegria. Esquadrinhou seus movimentos. Fitou sua pélvis no jeans escuro, pequena, máscula, guardando proporções ainda mais compensadoras. Demorou-se nas mãos, nos dedos longos, nos braços que expunham tão graciosamente seus músculos e veias sob a tez morena. Ela sentiu um irresistível desejo de lançar-se no peito do rapaz, repleto de promessas de aconchego, força, proteção. Podia sentir cada fantasia da mulher. Podia ver cada cena imaginada por aquela pobre mulher apaixonada que ansiava em encontrar novamente seu amado.
Sentiu a dor de cada um dos dias que ela amargou a saudade e a vontade esmagadora de encontrá-lo e poder, finalmente, concretizar o abraço mais que desejado. Sentiu nos próprios lábios os beijos que povoavam aquele cérebro doente de paixão. Tão avassaladora fora a experiência, que a delegada, sucumbindo, desfaleceu diante dos que estavam na sala.
O médico rapidamente amparou a cabeça antes que esta encontrasse o chão.  Em poucos segundos outros homens entravam na sala e a posicionavam em uma dessas  macas de emergência enquanto o médico checava os batimentos cardíacos, constatando o intenso descompasso. Os olhos refletiam o mesmo brilho acinzentado e não se podia constatar nem midríase ou miose.
- É grave! É o início de uma crise de erupções poéticas. Pode ser fatal – disse o doutor ao paramédico. – Ela vai precisar de doses endovenosas de poesia. Doses fortes – ele disse entregando a delegada aos profissionais da ambulância e voltando-se à sua paciente.
Esta, recostada na janela, fitava os cachos de acácia balançando ao vento. Cantarolava baixinho. Sua crise era estável, porém profunda.
Ele precisava encontrar este rapaz. Ele, mais do que ninguém, precisava saber do paradeiro daquele ladrão, pois somente assim poderia recuperar o coração de sua paciente e amada. Não poderia arriscar perder aquela vida, embora soubesse que já havia perdido seu coração para outro amor. Precisava tentar, ao mesmo tempo que temia ser inútil. Pois mesmo que o jovem do sorriso arrebatador o devolvesse, ela certamente preferiria ter o peito cheio de sol a ter de volta um coração vazio de amor.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Enfermo



A moça pousou a pequena toalha na testa quente. 
Os olhos fechados apenas se contraíram, queixa por causa do choque térmico. A outra abriu a mão com o comprimido. Ele sentou-se com dificuldade e, gemendo baixinho, obedeceu à criança que lhe oferecia também o copo com água.
O mundo lhe pesava nas costas, ombros, ossos...  A moleza e o fastio jogavam cartas ao lado da cama. Sobre ele, as irmãs valsavam e lhe machucavam articulações e músculos. O sol a pino, aquele calor e aquela luz potencializavam a adnamia que lhe petelecava sob a cama. Enfermo, ele não encontrava alívio em si. Por mais que pudesse ajudar a outrem, de nada lhe adiantava ser quem era.
Queixou-se. Virou-se. Levantou e voltou a recostar-se. Ah, se o mundo acabasse hoje, que favor me faria! Pensava ele contando os minutos no relógio diabólico que sorria sarcástico.
Lá pelas tantas a lua crescente deu as caras. Deitado, viu a luz prata pela janela, quis sorrir, mas não deu. A hipertermia voltava a castigar seus olhos e nada lhe parecia bom, nem ao paladar, nem ao coração. No calor do corpo e do quarto, mais uma vez adormeceu.
A sensação de queimação foi tão forte e tão estranha que lhe despertou. Parecia ter começado quente na altura da lombar, mas ao chegar à nuca era tão fria que lhe eriçou os pelos dourados. Então ele a viu. Ela entrava na ponta dos pés, num silêncio felino, que lhe era característico. Não usava nada além de uma camisola branca de meia, dessas favoritas, que com o tempo fica molinha. Os cabelos soltos desfrutavam da liberdade de serem lisos, sem responsabilidades. Cada uma das pontas acenou para o rapaz e ele achou estar alucinando, mas convenceu-se de estar lúcido ao sentir a umidade do beijo farto em sua testa. Naquele momento estremeceu novamente ao ouvir o grunhido da hipertermia, que xingava a mulher até sua quinta geração. Pulou para fora do corpo tão irritada que pisou na hiporexia, embaralhou as cartas e empurrou a astenia. Que bagunça! – riu o relógio que, logo perdeu o sarcasmo ao perceber que havia parado.
- Oi – ele disse com o costumeiro veludo na voz.
- Chamou e eu vim. – ela sentou-se sorrindo ao lado dele e, ajeitando-se, ofereceu-lhe os fartos seios como caloroso travesseiro.
- Pensei que me odiasse...
- Mentiroso! Sabes que te amo. É que és covarde. Ou homossexual e ainda não sabes...
Ele riu. Sentiu chacoalhar a cama. A adnamia agora era petelecada sob a cama e soltava gemidos curtos e altos. Foi ignorada.
- É... Sou um covarde insensível! E mesmo sem querer, sempre volto aqui, neste colo que jamais abandonou minhas memórias.
- Senta-te! – ela ordenou-lhe enquanto levantava e lhe tirava a camisa.
- O quê..
Então ele sentiu as mãos em suas costas, sentado como estava.
- Relaxa teu pescoço. Ajeita tuas costas.
Ela pôs-se a massagear os ombros largos e a carne dourada deslizava entre seus dedos.
- Hum... Que perfume bom! Que óleo é esse que você está usando?
- Não é óleo. É um bálsamo, é amor. Escorre pelos meus dedos quando estou assim, focada em ti – ela explicava enquanto sentia as miofibrilhas espreguiçando-se arteiras. Brilhavam ao toque generoso da moça, de modo que ele assemelhava-se aos piscas de Natal. E sorria. Ela então sentou-se encostada à cabeceira e o aninhou entre as pernas. Passava-lhe as mãos nos cabelos e cantarolava...
One day in your life
You'll remember a place
Someone touching your face
You'll come back and you'll look around  you...

 Ele abriu os olhos e os fechou ao sentir o coração voltar no tempo.

You'll remember the love you found here
You'll remember me somehow
Though you don't need me now
I will stay in your heart
And when things fall apart
You'll remember one day ...

Não percebeu quando as irmãs "gias" se atiraram pela janela. A lua dava risadinhas. Os intrusos saíram todos do quarto. Abusados! Insolentes! O relógio cochilava e até roncava à vezes. Dormia tranquilo ele e o rapaz, que, abduzido pelos cuidados carinhosos de sua amiga, encontrou a posição exata para um sono restaurador. Chegou a sonhar. Viu a si mesmo vagando de bicicleta, à noite, em busca de um telefone público. Levava muitas fichas no bolso e ansiava pelas horas de conversa entrosada, riso e suspiros do seu coração correspondido.
O sol machucou-lhe os olhos e ele acordou. Tudo estava no lugar. A mulher já não estava lá. Lembrou-se do sonho vívido, da canção, do alívio, da massagem. Lembrou dos beijos e achou que ainda os podia sentir na testa, nas mãos, nos lábios.
- Oi, pai! Você tá melhor?
Ele recostou no travesseiro que em nada lembrava os seios fartos. Sentiu um solavanco e logo todos os intrusos estavam lá novamente: mialgia, artralgia, astenia, hiporexia, adnamia, hipertermia, covardia... Ele pensava desanimado enquanto, olhando o relógio diabólico, voltava a contar as horas.